terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Sem Teto e Sem Lei (Agnès Varda, 1985)






"Queria filmar jovens que não tem onde dormir e que não apreciam a lei.
Queria filmar a liberdade e a sujidade"



Mona caminha e caminha, é arisca como uma felina.Vemos sua expressão séria e as paisagens, o céu aberto e seu caminho livre para seguir. Agnès Varda diz ter pensado em fazer esse filme por não conseguir esquecer a história de um andarilho morto congelado e encontrado embaixo de uma árvore. Diz também que as paisagens da região em que filma lhe mobilizam e, como parte desse depoimento que dá acima, contra também que aqueles que não tem para onde ir, os pobres, os alcóolatras, sujos, lhe comovem muito profudamente. 
O desafio em "Sem Teto e Sem Lei" é filmar essa extrema liberdade, esse desconcertanete percurso errante pelo mundo. Vemos Mona como um gato que se encosta na mesma medida em que se afasta se algo ameaça essa vida livre que escolheu, abandonando a carreira de secretária. O que vemos é o seu caminho e o rastro que seu modo de vida vai deixando nas pessoas, nas maiorias das vezes inquietação, provocação, especialmente nas mulheres, todas parecem refletir sobre sua condição ao se depararem com o desprendimento dela, mesmo que isso queira dizer acampar no inverno. Ser livre, no fundo, é como acampar no inverno, é se expor ao frio e a violência. A personagem de Sandrine Bonnaire é estuprada, ludibriada, questionada mas segue com seu corpo aberto pro mundo, pra paisagem, com sua rispidez de quem rejeito o que quase todos tem a lhe oferecer, segue com a sua solidão necessária. Vagar é algo importante de ser filmado, como vimos no recente Habemus Papam (2011) de Nanni Morettin. Nesse filme de Agnès Varda, ver Mona vagar é quase uma perturbação diante do questionamento de uma série de prisões ou de ligações aparentemente inofensivas que temos todos os dias: emprego, dinheiro, carreira, tempo. O filme faz pensar também no filme recente de Jem Cohem, Chain, em que também temos uma personagem que vaga, em que vemos também uma mulher à margem em um mundo de aprisionamento, revelado nesse filme através do dinheiro, do trabalho, da publicidade que aparece a todo momento. Dessa forma, nos dois filmes, a marginalidade, o alheiamento, a vagabundagem, acima de tudo para um mulher, aproxima dessa liberdade buscada, dessa vida como gato, da resistência do que isso representa. Varda, que sempre fez questão de explicitar seu feminisno, impregna suas imagens disso, desse aspecto de se lançar ao mundo que quer dizer resistir. 

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Cosmópolis



2012, crise mundial, mais uma crise do capitalismo, juventude na rua, muitos pobres, pouquíssimos muito muito ricos. Todas essas poderiam ser questões para entrarmos em Cosmópolis (2012), mas talvez faça mais sentido partirmos da limousine onde boa parte do filme acontece, onde há um isolamento, natural desse tipo de carro, nela não se ouve a cidade movimentada naquele dia. No início vemos somente o semblante enfadonho do personagem de Robert Pattinson, Eric, que decide cruzar a cidade em um dia turbulento, em que pode haver um atentado contra ele, para poder ir ao cabeleleiro. É esse o mote, um homem riquíssimo fazendo o que quer, inclusive um médico no carro para lhe fazer exames diários. 
Há a questão da letargia que acabam vivendo os muito ricos, o rosto de Eric explicita isso, nada parece lhe atingir, ele sequer poderia morrer nesse ataque, nem viver a adrenalina dessa possibilidade, ele vive, tamanha proteção, tamanho aparato, tamanho isolamento. As pessoas que fazem parte do seu universo vão entrando e saindo do carro, pouco muda, as conversas não evoluem apesar das tentativas e dos constantes questionamentos do protagonista, os contatos parecem ser uma tentativa de estremecer algo mas nada evolui. Os personagens falam como que em uma peça, ou até mesmo como robóticos que proclamam, em algo que remete a filmes de Bresson ou de Nikolas Klotz. Isso, claro, até que Eric chegue ao outro lado da cidade, depois de se livrar daquela atmosfera que o imobiliza, que não o comove, que acaba por não lhe servir mais, apesar de que nunca esteja claro o que realmente ele sente ou deseja, talvez simplesmente se lançar no mundo, levar um tiro, deixar que o ataque que se anuncia aconteça. O que parece irromper sua realidade o instiga, o mobiliza, como na cena de sexo com a sua segurança em que Eric pede para que ela atire nele com sua arma de choque, para que ele sinta algo que ainda não sentiu, como se fosse preciso que algo o invadisse, só uma grande ruptura o salvaria, se é que há salvação. A ruptura acontece, ele deixa a limousine, vai até o cabeleiro que lhe confere até um novo tom de voz, conversa banalidades com seu motorista, vai pra rua, quase é morto e é enfim confrontado sobre a sua posição e sobre a sua existência. Cronemberg cria um universo a ser invadido, a ser tensionado e suas imagens aos poucos vão violentando a realidade que ele vivia antes, a realidade da limousine, que no fim das contas, não era nada, não queria dizer nada a não ser um imenso e pesado vazio.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Chris Marker




No momento estou entre páginas abertas sobre a notícia, descrições curtas do que ele foi, do seu cinema,  das suas contribuições, resumos de sua carreira, fiapos que fazem parte de um dia triste em que fazemos um pouco como ele, ficamos entre estilhaços, pedaços do tempo vivido que ele tanto perseguiu. Junto com tudo isso, uma página do word aberta, de um capítulo sobre a obra dele que estava escrevendo e que tinha me prometido terminar hoje.
Se pensarmos seu cinema, principalmente após "La jetée", culminando na outra obra-prima "Sans Soleil", o que temos é a perseguição de um tema que parece o da vida dele, esse de entender o que se dá sobre as pessoas, os lugares e as coisas com a passagem do tempo, o que é possível recuperar nessa passagem, e se recuperar não é possível, como reescrever, recriar?

É difícil não falar dele sem falar que, com sua ajuda, esse tema passou a ser também o da minha vida, as imagens irrecuperáveis do passado, o reencontro embassado ou poderoso com elas, o que fica, o que se perde, a convivência poderosa entre presença e ausência que constituem o trabalho da memória, tudo isso, todas essas marcas do passado no presente.
Seu cinema faz com que o dia de sua morte seja de meditação. Teria ele encontrado a imagem de alegria da sua infância? Teria o homem que viaja no tempo encontrado alguma paz na relação com suas imagens de alegria passadas? Chegar ao extremo da lembrança é encontrar a própria morte? Essas questões ele nos deixa. Hoje não é dia de dizer muito, é dia de pensar sobre ele, sobre os instantes que nos acompanham, sobre as imagens do seu cinema que nos ajudaram a pensar essas relações e sobre as outras história da vida que podemos reescrever nesse trabalho incessante que é o da memória, ela que talvez seja a nossa única chance de imortalidade.

terça-feira, 19 de junho de 2012






Acompanhar a obra de Claire Denis é fazer uma investigação sobre as superfícies, uma experiência radical com a pele, os corpos e os movimentos daqueles que ela decide filmar. A sua concepção passa pela dança, como vemos em "Bom Trabalho" e o constante balé que culmina na fascinante sequência final com Denis Lavant nos mostrando que o contrário de morrer é dançar; pela integridade do corpo, ou do olhar sempre que Alex Descas aparece na tela em qualquer um de seus filmes; pela forma como as pessoas se movem em um romance, a proximidade que a diretora promove desde os envolvimentos juvenis e intensos de "U.S Go Home", às fantasias do casal de "O Intruso", ou no reencontro violento e sensual dos personagens de Descas e Beatrice Dalle em "Noites sem dormir.
Em "Vendredi Soir", que só vi hoje, é um encontro romântico em meio a um dia de um grande congestionamento em Paris que traz o estranhamento necessário a cidade para que Denis a filme como deseja, concebendo-a a partir dessas sensações, dessas vivências dos lugares, da passagem do tempo na rua lotada, carros parados, pessoas que passam, aqueles que querem e rejeitam carona, e também na rua vazia no dia seguinte na belíssima cena em que Laure corre por ela.
"Vendredi Soir" revela uma série de excelentes escolhas que compõe esse conjunto hipnótico (hipnose que já vinhamos sentindo desde o começo, mas que com a aproximação dos dois, até o beijo, percebermos que já sentíamos). E acredito que esse estado de atenção e de latência que a diretora constrói reside para além da câmera colada, detalhada, às vezes desorientada nessa aproximação, ou da montagem minuciosa que acompanha os movimentos, mas também na pouca informação, sabemos quase nada deles, sabemos que ela está de mudança pra morar com alguém. Dele não sabemos nada a não ser que ela lhe dá carona. Os mínimos gestos desses dois desconhecidos, em meio a essa rua lotada de Paris, despertam a atenção em cada detalhe, entre o sumiço dele, entre a música que ela ouve na rádio, a mão dele que segura o cigarro, a dela que muda a estação, indica a direção a seguir, gestos, olhares, toques que nos levam a maravilhosa sequência do beijo em uma perfeição de montagem que compõe uma representação radical de proximidade, contato, de quase fusão de dois em um.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Habemus Papam de Nanni Moretti





O papa de Nanni Moretti precisa ir pra rua.
Quantas vezes não pensamos no quanto a religião ou todo o falatório católico esteve e está distante da vida? O filme de Nanni é sobre este isolamento, alienação e mais que isso: sobre o peso de algo que não interessa a este homem, sobre decidir se voltar para humanidade, no que há de mundano nela, e não para o que a "santidade" poderia lhe oferecer.
Levar seu papa pra rua, depois de adentrar em todo misterioso e cômico ritual católico, é uma proeza que nos traz o Nanni, na comicidade de tudo aquilo, o que temos é uma rara beleza de descoberta da cidade, das pessoas. Trata-se de uma lindíssima recusa de poder, de centro e de escolha pela vida, pelo miúdo dela. Do homem, que apesar da recusa, não se retira de dizer de uma necessidade de mudança, da força que exige essa necessidade de mudança, e como sabemos, ao acompanhá-lo nesta andança pela cidade, como se ela fosse uma coisa toda nova, que o que é preciso é se voltar para o cotidiano, e que a religião, qualquer que seja ela, perceba tudo isto.

domingo, 16 de outubro de 2011

Claire Denis e seu "Bom Trabalho"



E não parou por ali a paixonite pelo cinema de Claire Denis e suas maravilhosas colaborações nestes filmes. Não podia deixar de falar de "Bom Trabalho", dessa livre adaptação de Billy Budd de Herman Melville, uma obra prima sobre corpo, desejo, poder em que Grégoire Colin vem como um Terrence Stamp no "Teorema" de Pasolini para desequilibrar os ânimos do chefe do grupo de homens da Legião Estrangeira, um Denis Lavant soberbo. Mas acima de tudo é um filme sobre dança, ou da dança como recurso para dizer, dizer de uma tensão. Nada como a dança para falar desta tensão dos corpos, do que nisso é desejo, violência, poder, desorientação. E como não falar da cena final - Qual o oposto de morrer? Viver? Não, dançar.